Beber o dia como se fosse noite
Beber a lágrima como se fosse mar
Beber a luz como se fosse alma
Beber tua boca como se não fosse flor
Beber teus olhos como quem não toca as mãos
Beber teus sonhos como quem rouba a lua
Beber dos ventos, confundir o tempo,
Beber da Era a solitária valsa
Beber das terras, as chuvas, e os sóis, entorpecer
Morrer de vinhos, moinhos de mim…
(outrora vez)
Beber o fim.
Com esse poema do Luis Zanini (impresso no contra-rótulo da garrafa), começo a aventura de abrir uma garrafa, do tão aguardado por mim, Era dos Ventos Peverella 2008. Após tomar conhecimento do projeto no blog Enoteca do Bruno Agostini, fiquei sabendo que se tratava de uma nova vinícola em que os sócios eram o Pedro Hermeto do restaurante Aprazível-RJ, o Luis Zanini da Vallontano e o Álvaro Escher, enólogo do lendário Cave Ouvidor. Com a presença desse último no projeto, não havia como não me lembrar do seu vinho, ainda mais por se tratar da mesma uva, a rara Peverella. Uma uva branca, trazida para o Brasil por imigrantes italianos do Alto Adige e do Vêneto, no final do século XIX, e que na década de 40 foi a uva branca mais plantada na serra gaúcha.
Hoje essa uva praticamente não existe mais na Itália, e no Brasil está ameaçada de extinção, pois os viticultores arrancam suas plantações para plantar uvas comercialmente mais rentáveis. O Álvaro e o Luis, fãs dessa uva, convenceram viticultores a não arrancar videiras de 80 anos, e fizeram o vinho em questão.
Encontrei o Luis em um evento que a Vallontano participava, e perguntei a ele sobre o projeto Era dos Ventos. Ele se assustou e perguntou como eu sabia disso. Disse que era fã do Cave Ouvidor e que estava muito interessado em conhecer o vinho. Criou-se uma empatia e ele me disse que eu seria o primeiro a conhecer o vinho, assim que estivesse disponível. Passados alguns meses, falo com o Luis e ele me diz que o vinho está disponível e que serei a primeira pessoa física a adquiri-lo.
Entrei em contato com o Pedro Hermeto no Rio, que me atendeu com muita cordialidade, e comprei os vinhos.
O vinho é feito todo em madeira, as cubas de fermentação são octogenárias de carvalho europeu. A fermentação ocorre 50% em barrica francesa e 50% em barrica americana, nenhuma delas nova. Não há filtração, estabilização, nem controle de temperatura. A busca desse vinho, é encontrar o gosto da terra em que essas uvas nasceram, respeitando ao máximo a natureza ao elaborá-lo. Tem muitos princípios biodinâmicos, muitos orgânicos, e muitos pessoais, do que eles acreditam ser o correto, com processos nada intervencionistas. Como me disse o Luis, é um vinho para as pessoas que querem se aprofundar na questão “vinho-terra”, não é um vinho para competição, degustação às cegas, etc…é para ser bebido de sandálias, na maior simplicidade possível, quase “franciscano”, em profunda sintonia com a natureza. Foram feitas aproximadamente 500 garrafas desse vinho dourado, complexo e aromático, e uma delas já cruzou fronteiras indo pousar em Paris. Levada por Jonathan Nossiter, a pedido do Luis, para apresentá-la a Jean Marc Roulot, do Domaine Guy Roulot, prestigiosa vinícola em Mersault na Borgonha. Roulot é casado com Alix de Montille, também enóloga e filha de Hubert de Montille (o senhor carequinha do cartaz de Mondovino), lenda de Volnay, também na Borgonha. O vinho foi aberto junto com um Fendant, suíço do Domaine de Beundon, um francês Juraçon de Yvonne Hégoburu e um Pouilly-Fuissé da Domaine Valette, todos brancos. O Era dos Ventos foi o primeiro a acabar, Roulot disse: “Isso é vinho de verdade, vinho de terroir, não parece com nada que eu tenha provado da América do Sul”. O vinho tinha conquistado o exigente paladar de Roulot. O Luis só errou ao colocar no contra-rótulo a frase: “Este vinho contém 11% de espírito”. Na verdade contém 111%. O Era dos Ventos soprou em Paris.