Entrevista com Randall Grahm, dono da Boony Doon (Parte I)

Segue uma reveladora entrevista com o “neurótico” e piadista produtor californiano Randall Grahm, onde ele diz que agora quer fazer vinhos menos perfeitos, mas mais originais:
Se tivessem sido produtores de vinho, Woody Allen ou John Lennon talvez fossem vitivinicultores da mesma linhagem do californiano Randall Grahm, o irrequieto dono e enólogo da Boony Doon Vineyard, uma vinícola situada em Santa Cruz, uma cidade litorânea distante cerca de 120 quilômetros ao sul de San Francisco mais famosa por ser uma das capitais do surfe do que por elaborar fermentados de uva. A aparência de Grahm, que fundou a Boony Doon em 1983, é a de um roqueiro a ostentar incontáveis turnês em seu currículo: cabelos longos, presos por um rabo de cavalo, óculos de aro redondo, tênis, camiseta e jeans. O humor lembra o do cineasta de Nova York: refinado e, ao mesmo tempo, cortante, cheio de (auto)citações e inseguranças. “Sou tão neurótico que, se talvez um dia eu tenha feito um grande vinho, posso nem ter percebido, não soube distingui-lo”, afirma, com rara sinceridade.
Os famosos rótulos da Boony Doon que parodiam vinhos europeus, sobretudo os franceses do Rhône e em menor escala os italianos, são a face mais conhecida de Grahm, uma figura dada a sátiras e experimentalismos num meio mais acostumado a formalismos e convenções. Seu vinho mais reverenciado é o Cigare Volant (Disco Voador, numa tradução literal do francês), um delicioso blend de Syrah, Grenache, Mourvèdre, Carignane e Cinsault que presta homenagem aos Châteauneuf-du-Pape, o mais famoso tinto do sul do Rhône. Em seu rótulo, um disco voador paira sobre um vinhedo. Mas suas provocações não se limitam aos rótulos. Ele só usa tampas de rosca em seus vinhos (em 2002, promoveu um funeral simbólico da rolha de cortiça em Nova York) e mais recentemente abraçou o cultivo biodinâmico de uvas, um ramo quase místico da produção orgânica. “No passado tentei agradar em demasia as pessoas. Tentei fazer vinhos perfeitos. Acho que os vinhos eram ligeiramente deformados por causa disso”, diz. “Hoje prefiro vinhos mais naturais, menos manipulados.”
Algumas das inusitadas ideias de Grahm, cujos vinhos são vendidos no Brasil pela importadora Vinci, podem ser conhecidas na entrevista abaixo, concedida na sede da vinícola em Santa Cruz. Para ir mais fundo no pensamento do produtor, comprar seu premiado livro Been Doon So Long, lançado no ano passado, é uma boa opção.

Por que você deixou a faculdade de filosofia e foi estudar enologia?
 
Fui mudando aos poucos. Eu não era um bom aluno de filosofia. Não tinha muita certeza sobre qual seria a minha carreira. Por acaso, trabalhei numa loja de vinhos e tive o privilégio extraordinário de degustar vinhos fantásticos quase todo dia. Isso foi algo especial. Acabei gostando muito da estética, da cultura do vinho, e comecei a pensar em como eu poderia me envolver com isso num nível mais profundo. Um dia então acabei tomando a decisão de mudar de carreira. Não foi uma coisa totalmente racional.

Alguém de sua família tinha alguma ligação com o mundo do vinho?
 
Nunca tive conexões com o vinho. Nunca trabalhei numa vinícola. Na verdade, até aquele momento, nunca tinha estado numa vinícola. Decidi que tinha que voltar para a escola e estudar enologia. Demorou um par de anos para eu entrar realmente em Davis (a Universidade da Califórnia em Davis é o principal centro de enologia dos Estados Unidos). Na verdade, além de filosofia, curso que eu nunca terminei, estudei ciências. Fiz um curso preparatório para medicina que incluía química, biologia e física. Esse curso eu terminei.

Quando você começou a fazer vinho, já tinha a ideia de adotar esse estilo irreverente, distante de toda a sisudez habitual do mundo do vinho?
 
Na vida, a gente não percorre um caminho em linha reta. Você vai numa direção, depois volta e vai em outra. É como velejar. Minha vida sempre foi em ziguezague. Agora espero estar mais indo mais em linha reta. Inicialmente, queria plantas uvas, fazer vinho e ter controle sobre todo o processo. Mas percebi que isso era muito difícil, muito pesado para mim. Então você aprende algumas pequenas lições. No início, eu estava cultivando Pinot Noir (na Califórnia) e, ao mesmo tempo, comprava uvas dessa variedade do Oregon. Mas logo percebi que as Pinot Noir do Oregon eram infinitamente melhores do que as que eu estava plantando. Por que então iria ter de gastar dinheiro e correr riscos cultivando Pinot Noir na Califórnia se eu podia comprar uvas melhores que as minhas? Essa constatação me levou a ter uma preocupação quase existencial sobre cultivar uvas. Você tem de saber o que está fazendo e ter sorte. Caso contrário, vai perder tempo e dinheiro e não chegar a nada.
Le Cigare Volant, o vinho top de Grahm: inspiração no Châteauneuf-du-Pape e disco voador sobre o vinhedo

Por que as uvas do Oregon eram tão melhores do que as suas?
Agora vem outro ponto importante dessa história: muitas coisas a gente simplesmente não sabe porque são de um jeito. Honestamente, não sei porque as uvas do Oregon eram melhores. Posso levantar algumas hipóteses. As vinhas deles eram mais velhas, ou talvez existam alguns lugares especiais no Oregon. Em geral, o clima no Oregon é melhor para Pinot Noir. Talvez as minhas vinhas fossem muito novas. Talvez, se eu esperasse mais dez anos, minhas uvas seriam tão boas quanto as do Oregon. Mas eu sabia que eu não iria ter sucesso — na verdade não iria sobreviver — se fizesse vinhos medíocres. Então havia uma certa pressão evolutiva para que eu encontrasse algo diferente para fazer. Eu me perguntava: “dado o que eu sei, como posso fazer um vinho de caráter?” Era jovem e sabia que não podia trabalhar com as uvas erradas.

A formação em enologia obtida em Davis ajudou em sua carreira?
 
Para o tipo de vinhos que faço hoje, a formação que tive em Davis é totalmente irrelevante. Acho que para responder a essa questão preciso antes fazer uma distinção entre vinhos de esforço e vinhos de terroir. Davis dá algumas ferramentas se você quer fazer vinho de esforço, vinhos controlados. Na maior parte da minha vida, fiz vinhos de esforço, em que você usa enzimas, leveduras, adota irrigação controlada etc. Mas estou convencido de que essa abordagem não dá os melhores vinhos. Ela produz vinhos sem defeitos, consistentes, agradáveis. Mas não dá vinhos originais. Acho que para fazer vinhos originais você de ser ligeiramente louco, ter inspiração, ser criativo, ter a mente aberta. E você tem de ter sorte.

Você fala em ser criativo, mas começou fazendo vinhos inspirados nos vinhos Rhône
 
Bem, eu não quero analisar muito a minha própria mente, mas acho que isso se deveu em parte à minha própria insegurança. Claro que eu tenho um grande ego. Mas acho que eu não queria passar a ideia de que meus vinhos eram mais do que eles realmente eram. Queria ser um pouco modesto. Não queria associá-los a ambições irrealistas. Talvez isso tenha a ver com a minha própria insegurança, mas eu nunca quis que meus vinhos fossem muito caros, nunca quis sugerir que eles eram melhores do que os vinhos europeus. Claro que eu queria, e quero, que eles fossem grandes vinhos, mas não queria que eles fossem pretensiosos. Nunca quis chamá-los Château alguma coisa. Isso para mim seria estúpido. Sei como são os vinhos autênticos, verdadeiros, e eu só queria situar os meus vinhos em seu local devido. Se eu fizesse um grande vinho, não teria nenhum problema em cobrar muitos dólares por ele.

Por que você diz que nunca fez um grande vinho?
 
Sou tão neurótico que, se talvez um dia eu tenha feito um, posso nem ter percebido, não soube distingui-lo. É mais ou menos como o Woody Allen. Acho que nem ele sabe dizer quais dos seus filmes são realmente bons e quais não são.

Por que você preferiu trabalhar com as uvas do Rhône e não com a Cabernet Sauvignon ou a Chardonnay como muitas fazem na Califórnia?
 
Pela originalidade. Se tivesse tido alguma ideia nova sobre como trabalhar com a Cabernet Sauvignon, que não é minha uva favorita, eu poderia tê-la escolhido. Mas não tive nenhuma ideia sobre como dar uma contribuição interessante com a Cabernet. Minha uva favorita é a Pinot Noir. Ainda vou um dia trabalhar com a Pinot Noir. Vou dedicar um pouco de tempo a ela. Mas não quero contar com a ideia de que o vinho será perfeito. Não vou viver para sempre. Ninguém vai. Nesse ponto da minha vida, penso que realmente gostaria de deixar uma contribuição (para o mundo do vinho). Claro que tudo que a gente faz pode ser uma contribuição para o mundo. Mas uma contribuição especial é produzir algo original, ajudar a nascer algo que artisticamente não existia antes no mundo. Foi bom ter sido um defensor das tampas de rosca, ter produzidos rótulos bonitos. Tudo isso foi fantástico. Mas descobrir um nova denominação de origem, uma nova uva, um novo estilo de vinho — enfim, descobrir um novo vinho —, é como descobrir uma nova estrela, um novo espécie, uma nova ave. O mundo se enriquece com isso.

Como nasceu a ideia desses rótulos bem-humorados? Eles agradam as pessoas, não?
 
Isso faz parte da minha personalidade. Gosto de agradar as pessoas, de vê-las felizes. Mas isso é uma faca de dois gumes. É algo positivo, mas também uma desvantagem. Acho que no passado tentei agradar em demasia as pessoas. Tentei recompensá-las demais, tentei fazer vinhos perfeitos. Acho que os vinhos eram ligeiramente deformados por causa disso. Eram muito manipulados. Hoje prefiro vinhos mais naturais, menos manipulados. Nos negócios, a gente faz o que gosta, mas também faz coisas em que a gente sabe que é bom, em que a gente se destaca.

Quem bola os rótulos?
 
Grande parte das ideias vem de mim mesmo. Mas eu trabalhei com vários artistas ao longo dos anos.

Você às vezes não se cansa deles, não pensa que se tornou um escravo deles, pois as pessoas sempre querem algo novo?
 
Estou tentando maneirar um pouco com os rótulos. Estou tentando torná-los um pouco menos malucos. Mas eu posso mudar de ideia. De repente, tenho uma grande ideia maluca e decido fazer outro rótulo doido.

Os produtores do Rhône sempre reagiram bem aos seus rótulos?
 
Acho que, desde o início, perceberam que os rótulos eram uma homenagem a eles. Tive sorte de que eles perceberam isso. Na verdade, os meus vinhos e os feitos na California com variedades do Rhône acabaram divulgando os vinhos deles. Eles viram que eu era um amigo, a favor da causa deles, e não um inimigo.

Fonte: Marcos Pivetta – www.jornaldovinho.com.br e blog do Luiz Cola